Paisagem-escape

Oferecemos nossos olhos à fotografia, e para quê – para vermos melhor? Os olhos de uma cabeça caída em rocha, uma câmera com uma lente que não vê bem. Em Acrylic Afternoons, Bruno Silva partilha connosco os mares que agitam sua infância, adolescência e idade adulta. São paisagens da memória, como quem cavoca a areia desde longe, segura uma lembrança nas mãos só para a ver desvanecer na espuma das águas frias e noturnas do tempo. 
Belas paisagens, apenas intuídas. O que vemos são fotografias soturnas de espaços, corpos e momentos que nunca se deixam capturar por completo; se mostram ora como sonhos, ora como delírios, numa abordagem em que o fotógrafo não pretende se apoderar de nada, mas deixar-se dissolver junto, tal como se dissolvem os contornos nas imagens. Num mundo a cores e sem a luz aprisionante do flash, como é presente em seus trabalhos anteriores, aqui as imagens de Bruno continuam a mover-se num sonho profundo e partilhado.
Provavelmente num papelzinho qualquer, Sebastião Alba escreveu que “o amor é não esquecer”. A fotografia é ferramenta que nos lembra do não-esquecimento, mas às custas da obliteração do presente. O custo de roubar a imagem do curso do tempo é deixar escorrer o instante na expectativa de que a lente o capture. Assim, o perigo da memória é deixar-se diluir em imagens, e que a vida se dê unicamente através dos contornos e cores que a câmera apreende. 
Em um adendo a Alba, o amor é não esquecer e é deixar escapar – um mar, uma infância, uma mulher, uma noite. Aquilo que mais importa é o que menos se deixa apreender, que mais resiste a representações fiéis e nítidas. As imagens da memória só podem ser intuídas, numa aproximação que exige não só o olho, mas sobretudo o corpo. 
Levar o olho à memória, levar a memória ao olho, e fotografar como quem deixa escapar. Deixar cair a lembrança, assim como cai a cabeça do menino na rocha, e a câmera do fotógrafo no solo. Fotografar não a mulher, mas seus azuis (a preto e branco). Fotografar não a queda, mas o ar que antecede o chão. A cabeça segue sentindo o cheiro de mar. A lente segue ouvindo as gaivotas e os navios atracando no cais.
Paisagem-escape, land-escape. Neste projeto de Bruno, o mar é uma constante que no entanto nunca lá está. A água confere o ritmo dos dias e das noites, é fixa no seu eterno movimento: puxa, repuxa, sobe, desce, num relógio que de tão alto e tão preciso, dele facilmente se esquece. O mar engole tudo, é gélido e destrutivo – e contudo é a pedra (firme, cravada, inerte) a origem da dor e da transformação profunda. O mutável e o perpétuo – as imagens surgem deste encontro impossível, que Bruno intui e que lhe foge. Aliás, o destino do tempo só pode ser este, a fuga – por isso fotografamos, por isso vemos imagens. Aqui, os anos e as fotografias têm a duração de uma tarde acrílica, sentida em vinil, com o sabor salgado do amor na ponta da memória, de um mar que de tão evidente demorou a deixar-se ver – e que ainda assim nos escapa.

Betina Juglair
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