Da Obra ao Negro
A fórmula “A Obra ao Negro” (...), designa, nos tratados alquímicos, a fase de separação e dissolução, que era, diz-se, a parte mais difícil da Grande Obra. É ainda discutível se uma tal expressão se aplicava a audaciosas experiências sobre a própria matéria, ou se significava simbolicamente as provações do espírito ao libertar-se de rotinas e ideias feitas. Significou, sem dúvida, uma coisa e outra, distinta ou
simultaneamente.
Marguerite Yourcenar, 1968
A série de fotografias de Pego Negro, um projeto de Bruno Silva realizado entre 2017 e 2020, dá-nos a ver à lupa uma zona desconhecida, senão mesmo esquecida, da cidade do Porto. Esquecida porque aquilo que era um pequeno vale na periferia da cidade do Porto foi engolido, descontextualizado e descaracterizado pela expansão e invasão urbana, estando hoje totalmente cercado e enterrado sob três grandes artérias rodoviárias que circundam a cidade. Do nome Pego Negro, deste lugar recôndito, resta apenas uma rua sinuosa meia perdida no mapa, uma minúscula travessa e um mais recente bairro da associação de moradores, grupo provavelmente criado e deslocalizado aquando da transformação violenta desta zona periférica. Restará, com certeza, ainda que de uma forma efémera, a memória das poucas pessoas que ainda lá vivem e, com este projeto de Bruno Silva, uma possível cristalização deste lugar no presente.
Da visão do autor ficam, não apenas o lugar e o olhar, mas também os personagens, os seus testemunhos e expressões e, ainda, objetos avulsos, encontrados ao longo duma deambulação subjetiva e algo perturbadora do percurso idealizado. Do Rio Tinto, com pouco mais de 10 km de extensão, resta agora um ribeiro engasgado, poluído, sedimentado, praticamente entubado até ao Rio Douro na zona de Campanhã, e que outrora foi um curso de água cristalino ainda que manchado há muito tempo, segundo a lenda, de sangue numa batalha entre Cristãos e Mouros.
Todavia, não foram estes os aspetos que suscitaram a curiosidade do autor, mas antes, sobre estes factos e memórias, sob a sua experiência pessoal do lugar, a construção de um enredo, de uma narrativa no terreno, de uma “atmosfera film noir, que serve a roupagem para o território e a sua relação com o próprio meio fotográfico”. Bruno Silva, numa perspetiva alquímica, vai explorar as fragilidades e subtilezas do suporte analógico, utilizando a própria água do rio poluído para revelar a película a preto e branco e para, segundo ele, conseguir efeitos como a solarização e, também, o aparente desgaste das próprias imagens.
Não alheio a estes fatores, o degradado, o esquecido, este lugar abandonado e os seus protagonistas, remetem-nos também para algo insólito, uma sensação por vezes meio
macabra, com a qual podemos facilmente estabelecer associações, ainda que a preto e branco, com a Dark America tão bem retratada por David Lynch – uma realidade suburbana agora meio inóspita, de onde brotam estranhos objetos, seres, personagens.
Mas o autor, nas suas itinerâncias neste pequeno e reservado território, foi também, tal agrimensor arquivista, colecionando, documentando e fotografando variados objetos avulso, desde ossos, penas, folhas de árvores, pedras, chinelos de borracha, cordas, plásticos e utensílios em metal que descontextualizam e elevam o profano, o banal, para uma instância mais sagrada. Estes mesmos objetos, parte integrante e mnemónica dos trilhos galgados, contam-nos, com as paisagens fotografadas in situ e com os escassos personagens que ainda lá vivem, estórias do lugar, sempre abertas e permeáveis às interpretações que nos aprouverem.
É neste clima e pressuposto que nos vamos encontrar com o trabalho nas diferentes exposições e propostas de montagem propostas por Bruno Silva, primeiro em Alicante, depois Paris, Tenerife, Cerveira e por fim numa exposição coletiva na Galeria Adorna no Porto. De facto, as imagens de Pego Negro, são suscetíveis de serem organizadas e dispostas no espaço de parede segundo diferentes critérios, diferentes perspetivas, pois aparentemente, em cada momento expositivo, o autor conta-nos diferentes episódios e eventos de uma mesma história, como se tratassem de pequenos atlas ou de várias constelações de uma mesma galáxia. Este será, porventura, um dos aspetos mais interessantes e originais do projeto: embora cada uma das imagens nos apresente o parar do olhar sobre uma paisagem, um personagem ou um objeto, o disparar do obturador da máquina fotográfica para o exterior, de dentro para fora, é só na leitura e perceção do todo, com as imagens organizadas no espaço, que se revela o todo e cada uma das suas particularidades.
Pedro Maia
Porto, Dezembro de 2022
Porto, Dezembro de 2022